Queda que as mulheres têm para os tolos
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em A Marmota, Rio de Janeiro, 19, 23, 26 e
30/04 e 03/05/1861.
ADVERTÊNCIA
Este livro é curto, talvez devera sê-lo
mais.
Desejo que ele
agrade, como me sai das mãos; mas é com pesar que me vanglorio por esta obra.
Falar do amor das
mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?
Diz-se que a
matéria é rica e fecunda; eu acrescento que ela tem sido tratada por
muitos. Se tenho, pois, a pretensão de ser breve, não tenho a de ser original.
Contento-me em
repetir o que se disse antes de mim; minhas páginas conscienciosas são um resumo de
muitos e valiosos escritos. Propriamente
falando, é uma comparação científica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem
os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéia de aprofundar um tão
importante exemplo.
Quanto à
imparcialidade que presidiu à redação deste trabalho, creio que ninguém a porá em dúvida.
Exalto os tolos sem
rancor, e se critico os homens de espírito, é com um desinteresse, cuja extensão
facilmente se compreenderá.
I
Il est des noeuds secrets, il est des sympathies.
Passa em julgado que as mulheres lêem
de cadeira em matéria de fazendas, pérolas e
rendas, e que, desde que adotam uma fita, deve-se crer que a essa
escolha presidiram motivos plausíveis.
Partindo deste princípio, entraram os
filósofos a indagar se elas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante,
ou de um marido.
Muitos duvidaram.
Alguns emitiram
como axioma, que o que determinava as mulheres, neste ponto, não era, nem a razão,
nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um
homem lhes agradava, era por se ter apresentado primeiro que os outros, e que
sendo este substituído por outro, não tinha esse outro senão o mérito de
ter chegado antes do terceiro.
Permaneceu por muito tempo este sistema
irreverente.
Hoje, graças a Deus,
a verdade se descobriu: veio a saber-se que as mulheres escolhem com pleno
conhecimento do que fazem. Comparam,
examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nele a
preciosa qualidade que procuram.
Essa qualidade é... a toleima!
II
Desde a mais
remota antiguidade, sempre as mulheres tiveram a sua queda para os tolos.
Alcibíades,
Sócrates e Platão foram sacrificados por elas aos presumidos do tempo.
Turenne, La Rochefoucauld, Racine e Molière, foram traídos por suas amantes, que se
entregaram a basbaques notórios. No século
passado todas as boas fortunas foram reservadas aos pequenos abades.
Estribadas nesses exemplos, as nossas contemporâneas continuaram a idolatrar
os descendentes dos ídolos das suas avós.
Não é nosso fim
censurar uma tendência, que parece invencível; o que queremos é motivá-la.
Por menos
observador e menos experiente que seja, qualquer pessoa reconhece que a toleima é quase
sempre um penhor de triunfo. Desgraçadamente ninguém pode por sua própria
vontade gozar das vantagens da toleima. A
toleima é mais do que uma superioridade ordinária: é um dom, é uma
graça, é um selo divino.
"O tolo não se faz, nasce
feito."
Todavia, como o
espírito e como o gênio, a toleima natural fortifica-se e estende-se
pelo uso que se faz dela. É estacionária no pobre-diabo, que
raramente pode aplicá-la; mas toma proporções desmarcadas nos homens a
quem a fortuna, ou a posição social cedo leva à prática do
mundo. Este concurso da toleima inata e da toleima adquirida é que produz a mais temível espécie de
tolos, os tolos que o acadêmico Trublet chamou "tolos completos, tolos
integrais, tolos no apogeu da toleima."
O tolo é abençoado do céu pelo
fato de ser tolo, e é pelo fato de ser tolo, que lhe vem a certeza, de que, qualquer carreira
que tome, há de
chegar felizmente ao termo. Nunca solicita empregos, aceita-os em virtude do direito que
lhe é próprio: Nominor leo. Ignora o que é ser corrido ou desdenhado;
onde quer que chegue, é festejado
como um conviva que se espera.
O que opor-lhe
como obstáculo? É tão enérgico no choque, tão igual nos esforços
e tão seguro no resultado! É rocha despegada, que rola, corre, salta
e avança caminho por si, precipitada pela sua própria massa.
Sorri-lhe a fortuna
particularmente ao pé das mulheres. Mulher alguma resistiu nunca a um tolo.
Nenhum homem de espírito teve ainda impunemente um parvo como rival. Por quê?... Há
necessidade de perguntar
por quê? Em questão de amor, o paralelo a estabelecer entre o
tolo e o homem de siso, não é para confusão do último?
III
Em matéria de amor, deixa-se o homem de
espírito embalar por estranhas ilusões. As mulheres são para ele entes de mais
elevada natureza que a sua, ou pelo menos
ele empresta-lhes as próprias idéias, supõe-lhes um coração como o seu,
imagina-as capazes, como ele, de
generosidade, nobreza e grandeza. Imagina que para agradar-lhes é
preciso ter qualidades acima do vulgar. Naturalmente tímido, exagera mais ao pé delas a sua insuficiência; o
sentimento de que lhe falta muito,
torna-o desconfiado, indeciso, atormentado. Respeitoso até à timidez,
não ousa exprimir o seu amor em palavras; exala-o por meio de uma não
interrompida série de meigos cuidados, ternos respeitos
e atenções delicadas. Como nada quer à custa de uma indignidade, não se
conserva continuamente ao pé daquela que ama, não
a persegue, não a fatiga com a sua presença. Para interessá-la em suas
mágoas, não toma ares sombrios e tristes; pelo contrário, esforça-se por ser sempre bom, afetuoso e alegre
junto dela. Quando se retira da sua
presença, é que mostra o que sofre, e derrama as suas lágrimas em
segredo.
O tolo, porém, não
tem desses escrúpulos. A intrépida opinião que ele tem de si próprio, o reveste de
sangue frio e segurança.
Satisfeito de si, nada lhe paralisa a
audácia. Mostra a todos que a ama, e solicita com instância provas de amor. Para
fazer-se notar daquela
que ama, importuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a
nos espetáculos. Arma-lhe laços grosseiros. À mesa, oferece-lhe uma fruta para
comerem ambos, ou passa-lhe misteriosamente, com muito jeito, um bilhete de amores. Aperta-lhe
a mão a
dançar e saca-lhe o ramalhete de flores no fim do baile. Numa noite de partida,
diz-lhe dez vezes ao ouvido: "Como é bela!", porquanto revela-lhe o instinto, que pela
adulação é que se alcançam as mulheres, bem como se as perde, tal como acontece com os
reis. De resto, como nos
tolos tudo é superficial e exterior, não é o amor um acontecimento
que lhes mude a vida: continuam como antes a dissipá-la nos
jogos, nos salões e nos passeios.
IV
O amor, disse
alguém, é uma jornada, cujo ponto de partida é o sentimento, e cujo termo inevitável a
sensação. Se é isto verdade, o que há a fazer, é embelecer a estrada e chegar o mais
tarde possível ao
fim. Ora, quem melhor do que o homem de espírito sabe parolar à beira do caminho,
parar c colher flores, sentar-se às sombras frescas, recitar
aventuras e procurar desvios e delongas? Um caracol de cabelos mal
arranjado, um cumprimento menos apressado que de costume, um som
de voz discordante, uma palavra mal escolhida, tudo lhe é pretexto
para demorar os passos e prolongar os prazeres da viagem. Mas
quantas mulheres apreciam esses castos manejos, e compreendem o encanto dessas paradas
à borda de uma veia límpida que reflete o céu? Elas querem amor, qualquer que seja
a sua natureza, e o que o
tolo lhes oferece é-lhes bastante, por mais insípido que seja.
V
O homem de espírito, quando chega a
fazer-se amar, não goza de uma felicidade
completa. Atemorizado com a sua ventura, trata antes de saber por que é feliz! Pergunta por que e como
é amado; se, para uma amante, é ele
uma necessidade, ou um passatempo; se ela cedeu a um amor invencível;
enfim, se é ele amado por si mesmo. Cria ele
próprio e com engenho as suas mágoas e cuidados; é como o Sibarita que, deitado
em um leito de flores, sentia-se incomodado pela dobra de uma folha de rosa. Num olhar, numa palavra, num gesto,
acha ele mil nuanças imperceptíveis, desde que se trata de interpretá-las
contra si. Esquece os encômios que levemente o tocam, para lembrar-se somente de uma observação feita ao menor dos seus
defeitos e que bastante o tortura. Mas, em compensação desses tormentos, há no seu amor tanto encanto e delícias!
Como estuda, como extrai, como saboreia as volúpias mais fugitivas até a última essência! Como a sua sensibilidade especial sabe descobrir o encanto das
criancices frívolas, dos invisíveis atrativos, dos nadas adoráveis!
O tolo é um amante sempre
contente e tranqüilo. Tem tão robusta confiança nos seus predicados, que antes de ter provas, já
mostra a certeza de ser amado. E assim deve ser. Em sua opinião faz uma grande honra à mulher a quem
dedica os seus eflúvios. Não lhe deve felicidade; ele é que lha dá; e como tudo o leva a
exagerar o benefício,
não lhe vem à idéia de que se possa ter para com ele ingratidões. Assim, no
meio das alegrias do amor, saboreia ainda a
embriaguez da fatuidade. Mas como, em definitivo, é ele próprio o objeto de seu culto, depressa o tolo se aborrece, e
como o amor para ele não é mais que um
entretenimento que passa, os últimos favores, longe de o engrandecerem
mais, desligam-no pela sociedade.
VI
O homem de
espírito vê no amor um grande e sério negócio, ocupa-se dele como
do mais grave interesse de sua vida, sem distração, nem reserva. Pode
perder nele algumas das suas qualidades viris, mas é para crescer em abnegação,
em dedicação, em bondade. Suporta tudo
daquela que ama sem nada exigir dela. Quando ela atende a alguns dos seus
votos, quando previne alguns dos seus desejos,
longe de ensoberbecer-se, agradece com uma efusão mesclada de surpresa.
Perdoa-lhe generosamente todos os males que lhe causa porque, muito orgulhoso
para enraivecer-se ou lastimar-se, não sabe
provocar, nem a piedade que enternece, nem o medo que faz calar. Oh! que inferno, se a má ventura lhe depara
uma mulher bela e má, uma namoradeira
fria de sentidos, ou uma moça de rabugice precoce!
Sofre então vivamente com a perfídia da mulher
amada, mas desculpa-a pela fragilidade do
sexo. A sua indulgência pode então conduzi-lo
à degradação. Ele segue a olhos fechados o declive que o arrasta ao abismo, sem que a queixa, a ambição, a
fortuna possam retê-lo.
O néscio escapa a estes perigos. Como não é ele quem ama, é
ele quem domina. Para vencer uma
mulher finge por alguns momentos o
excesso de desespero e de paixão; mas isso não passa de um meio de guerra, tática de cerco para enganar e seduzir o
inimigo. Logo depois recobra ele a tirania,
e não a abdica mais. Para entreter-se nisso, tem o tolo o seu método, as suas
regras, a sua linha de conduta.
É indiscreto por princípio, porquanto divulgando os favores que recebe, compromete a que lhe concede e ao mesmo tempo afasta as rivalidades nascentes. É suscetível pela razão, cioso
por cálculo, a fim de promover estes
proveitosos amuos, que lhe servem, a seu grado, para conduzir a uma ruptura definitiva, ou para exigir um novo
sacrifício. Mostra uma cruel indiferença, indicando pouca confiança nas provas de simpatia que lhe dão. Num
baile, proibindo à sua amante de
dançar, não faz caso dela, de propósito. Aflige-a com aparências de
infidelidade, falta à hora marcada para se encontrarem, ou, depois de se ter feito esperar, vem, dando desculpas equívocas
de sua demora. Hábil em semear a inquietação e o susto, faz-se obedecer à força de ser tirano, e acaba por inspirar uma afeição
sincera à força de promovê-la.
VII
O homem de
espírito, assustado com o vácuo imenso, que deixa no coração uma
afeição que se perde, só rompe o laço que o prende à causa de
dilacerações interiores.
Como bem se disse, sendo preciso um dia
para conseguir, é preciso mil para se reconquistar.
Mesmo no momento em que volta
a ser livre: quantas vezes um sorriso, um meneio de cabeça, uma maneira de puxar o
vestido, ou de inclinar
o chapelinho de sol, não o faz recair no seu antigo cativeiro!
De resto, a mulher, a quem ele
tiver revelado o segredo do seu coração, ficará sempre para ele como ser à parte. Não a
esquece nunca.
Morta, ou separado, nutre por
aquela que a perdeu longas saudades. Perseguido pela lembrança que dela conserva,
descobre muitas
vezes que as outras mulheres por quem se apaixona só têm o mérito de se parecerem com
ela. Dá-se ele então a comparações que o desvairam, que o irritam, que o põem fora de si,
exigindo no seu
trajar, no seu andar e até no seu falar alguma coisa que lhe recorde o seu implacável ideal.
E se é ele o abandonado, que de
torturas que sofre!
Viver sem ser amado
parece-lhe intolerável. Nada pode consolá-lo ou distraí-lo.
No caso de tornar a ver os sítios que
foram testemunhas da sua felicidade, evoca à sua memória mil circunstâncias
perseverantes e cruéis. Ali está a cerca
cheirosa, cujos espinhos rasgaram o véu da infiel; aqui, o rio que a medrosa só ousava atravessar amparada pela sua mão; além está a alameda, cuja areia fina
parece ter ainda o molde de seus ligeiros passos. Contempla na janela as
longas e alvas cortinas, no
peitoril os arbustos em flor, na relva a mesa, o banco, as cadeiras em que outrora se
sentaram.
É possível que ela
tenha mudado tão de repente? Pois não foi ainda ontem que de
volta de um passeio ao bosque, lhe enxugou o suor da testa, e que se prendia em doce
e estranho amplexo?...
Hoje, nem mais doçuras, nem
mais apertos de mão, nem mais dessas horas ébrias em que todo o passado ficava
esquecido! Ele está só, entregue a si mesmo, sem força, sem alvo: é o delírio
do desespero.
O tolo está acima dessas misérias. Não
o assusta um futuro prenhe de qualquer
inquietação aflitiva. Sempre acobertado pela bandeira da inconstância,
desfaz-se de uma amante sem luta, nem remorsos; utiliza uma traição para voar a novas aventuras. Para ele nada há de terrível em uma separação, porque nunca supõe
que se possa colocar a vida numa vida alheia, e que fazendo-se um hábito
dessa comunidade de existência, faz-se pouco
novamente sofrer, quando ela tiver de quebrar-se.
Da mulher, que deixa de amar, ele só
conserva o nome, como o veterano conserva o
nome de uma batalha para glorificar-se, ajuntando-o ao número das suas
campanhas.
VIII
Há uma época em
que custa-se muito a amar. Tendo visto e estudado um pouco a mulher, adquire-se uma
certa dureza que permite aproximar-se sem perigo das mais belas e sedutoras.
Confessa-se sem rebuço a admiração que elas
inspiram, mas é uma admiração de artista, um entusiasmo sem ternura. Além
disso, ganha-se uma penetração cruel para
ver, através de todos os artifícios de casquilha, o que vale a submissão
que elas ostentam, a doçura que afetam, a ignorância que fingem. E prenda-se um
homem nessas condições!
De ordinário, é
entre trinta a trinta e cinco anos, que o coração do homem de
espírito fecha-se assim à simpatia e começa a petrificar-se. É possível
que nele tornem a aparecer os fogos da mocidade, e que ele venha a sentir um amor
tão puro, tão fervente, tão ingênuo como nos frescos anos da adolescência;
longe de ter perdido as perturbações, as
apreensões, os transportes da alma amorosa, sente-os ele de novo com
emoção mais profunda e dá-lhes um preço tanto mais elevado, quanto ele está certo
de não os ver renascer.
Oh! então lastima-se o pobre
insensato! Ei-lo obrigado a ajoelhar-se aos pés de uma mulher para quem é nada o mérito de
caminhar pouco e
pouco atrás de sua sombra, de fazer exercício em torno aos seus vestidos, de se extasiar diante de seus
bordados, de lisonjear os seus enfeites. Ai,
triste! esses longos suplícios o revoltam, e, Pigmalião desesperado, afasta-se de Galatéia, cujo
amor se não pode reanimar.
Esses sintomas de idade são
desconhecidos ao tolo, porquanto cada dia que
passa não lhe faz achar no amor um bem mais caro, ou mais difícil a conquistar. Não tendo sido, nem
melhorado, nem endurecido pelos reveses da vida, continuando a ver as
mulheres com o mesmo olhar, exprime-lhes os seus
amores com as mesmas lágrimas e os mesmos
suspiros que lhes reserva para pintar os antigos tormentos. E como ele só
exigiu sempre delas aparências de paixão, vem facilmente a persuadir-se que é amado. Longe de fugir, persevera
e — triunfa.
IX
O homem de espírito é o menos hábil para escrever a
uma mulher.
Quando se arrisca a escrever uma carta,
sente dificuldades incríveis. Desprezando o
vasconço da galanteria, não sabe como se há de fazer entender. Quer ser
reservado e parece frio; quer dizer o que espera e indica receio; confessa que
nada tem para agradar, e é apanhado pela
palavra. Comete o crime de não ser comum ou vulgar. As suas cartas saem do coração e não da cabeça; têm
o estilo simples, claro e límpido, contendo apenas alguns detalhes
tocantes. Mas é exatamente o que faz com que
elas não sejam lidas, nem compreendidas. São cartas decentes, quando as
pedem estúpidas.
O tolo é
fortíssimo em correspondência amorosa, e tem consciência disso. Longe de recuar diante da
remessa de uma carta, é muitas vezes por aí
que ele começa. Tem uma coleção de cartas prontas para todos os graus de paixão. Alega nelas em
linguagem brusca o ardor de sua
chama; a cada palavra repete: meu
anjo, eu vos adoro. As suas fórmulas são enfáticas e chatas; nada
que indique uma personalidade. Não faz suspeitar
excentricidade ou poesia; é quanto basta;
é medíocre e ridículo, tanto melhor. Efetivamente o estranho que ler as suas missivas, nada tem a dizer; na
mocidade o pai da menina escrevia assim; a própria menina não esperava
outra coisa. Todos estão satisfeitos, até os amigos. Que querem mais?
X
Enfim, o homem de
espírito, em vista do que é, inspira às mulheres uma secreta
repulsa. Elas se admiram com o ver tímido, acanham-se com o ver delicado, humilham-se
com vê-lo distinto.
Por muito que ele
faça para descer até elas, nunca consegue fazê-las perder o
acanhamento; choca-as, incomoda-as, e esse acanhamento, de que ele é causa, torna frias as
conversações mais indiferentes, afasta a familiaridade e assusta a inclinação
prestes a nascer.
Mas o tolo não
atrapalha, nem ofusca as mulheres. Desde a primeira entrevista, ele as anima e
fraterniza-se com elas. Eleva-se sem acanhamento nas conversas mais insulsas,
palra e requebra-se como elas. Compreende-as
e elas o compreendem. Longe de se sentirem deslocadas na sua companhia,
elas a procuram, porque brilham nela. Podem diante dele absorver todos os
assuntos e conversar sobre tudo, inocentemente, sem conseqüência. Na persuasão
de que ele não pensa melhor, nem contrário a
elas, auxiliam o triste, quando a idéia lhe falta, suprem-lhe a indigência. Como se fazem valer por ele, é justo que lhe paguem, e por isso consentem em ouvi-lo em
tudo. Entregam-lhe assim os seus
ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um belo dia admiram-se de ter encontrado no amigo complacente um
senhor imperioso!
XI
Compreende-se, por
este curto esboço, como e quanto diferem os tolos e os homens
de espírito nos seus meios de sedução. A conclusão final é, que os tolos triunfam, e
os homens de espírito falham, resultado importante e deplorável, nesta matéria
sobretudo.
XII
Depois de ter indagado as causas da
felicidade dos tolos, e da desgraça dos
homens de espírito: perderemos tempo precioso em acusar as mulheres? Não hesitamos em deitar as culpas
sobre os homens de espírito, como fez o profundo Champcenets.
Por que não estudam os tolos, diz-lhes
este autor, para conseguir imitá-los? Há de
custar-vos muito fazer um tal papel: mas há proveito sem desar? E depois, quando assim sois a isso obrigado, visto como não vos dão outro meio de solução, querer
subtrair o belo sexo a império dos
tolos, descortinando-lhe a perversidade do seu gosto, é coisa em que ninguém
deve pensar, é uma loucura; fora o mesmo que querer mudar a natureza, ou
contrariar a fatalidade.
Porquanto, ficai sabendo, continua
Champcenets, que as mulheres não são senhoras de si próprias; que nelas tudo é
instinto ou temperamento, e que portanto elas não podem ser culpadas de suas
preferências. Só respondemos pelo que praticamos com intenção e discernimento.
Ora, qual delas pode dizer que predileção a impele, que paixão a obriga, que sentimento a faz ingrata, ou que vingança lhe dita
as malignidades? Debalde procurareis delas tão cruel prodígio; nenhuma é cúmplice
do mal que causa: a este respeito, o seu estouvamento atesta-lhes a candura.
Por que vos
obstinais em pedir-lhes o que a Providência não lhes deu? Elas se apresentam belas,
apetitosas e cegas: não vos basta isto? Querê-las com juízo, penetrantes e
sensíveis, é não conhecê-las.
Procurai as
mulheres nas mulheres, admirai-lhes a figura elegante e flexível,
afagai-lhes os cabelos, beijai-lhes as mãos mimosas; mas tomai como um
brinquedo o seu desdém, aceitai os seus ultrajes sem azedume, e às suas cóleras mostrai
indiferença. Para conquistar esses entes frágeis
e ligeiros, é preciso atordoá-los pelo rumor dos vossos louvores, pelo fasto do vosso vestuário, pela publicidade das vossas homenagens.
XIII
Sim, sim, é mister ousar tudo para com as mulheres.